Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

Escrever falas de personagens na prosa literária pode parecer algo fácil, mas , na verdade, se complica quando estamos diante de realizar esta tarefa. Outra armadilha do mesmo tipo, é a escrita em primeira pessoa.

Para ambos casos, os russos, que figuram entre os maiores romancistas da literatura mundial, especialmente no século XIX, têm uma palavra para designar estas narrativas: Skaz.

David Lodge, em seu livro A arte da ficção, trata deste tema no quarto capítulo da obra. Nós vamos de carona com o escritor e crítico literário para aprendermos um pouco mais sobre esta técnica.

O que é Skaz

Como explicamos anteriormente, Skaz é um tipo de texto na escrita criativa cuja estética – forma e conteúdo – se assemelha à forma da fala. Nas palavras de Lodge, “o narrador é um personagem que se refere a si mesmo com ‘eu’ e trata o leitor por ‘você’”.

Na prática, há uma sintaxe própria da língua falada. Realizar isso literariamente, contudo, é um exercício muito difícil, porque essa essa aparência de simplicidade é resultado de muito trabalho por parte do escritor.

Capa do livro com a metade superior pintanda em vermelho e um cavalo que divide a metade de página, onde no segundo plano, em branco, tem uma cidade desenhada como se fosse a lápis
Reprodução da capa do livro “O apanhador no campo de centeio”

Me perdoe pela carta longa. É que não tive tempo de escrever menos

A frase acima, com algumas pequenas variações, já foi atribuída a diferentes escritores e pensadores, de Blaise Pascal, passando por Voltaire, até Mark Twain. Qual seja o verdadeiro autor e a versão original, ela sintetiza o desafio implicado no ato de escrever.

J. D. Salinger, autor de O apanhador no campo de centeio, faz esse exercício de maneira exemplar, para não dizer brilhante. Vejamos um trecho da obra que serve, inclusive, de exemplo no livro de Lodge.

A velha Sally não falou muito, só para rasgara seda dos Lunt, porque ela estava ocupada bisbilhotando tudo e sendo bacana. Aí, de repente, ela viu um otário conhecido dela no outro lado do saguão. O cara estava com um desses ternos de flanela bem escuros e um colete xadrez. Coisa de almofadinha da Ivy League. Grande coisa. Ele estava escorado na parede, fumando desesperado e aborrecido nas últimas. A velha Sally ficou dizendo “Eu conheço aquele cara de algum lugar”. Ela sempre conhecia alguém, em tudo que era lugar, ou pelo menos achava que conhecia. E ficou repetindo esse papo até eu encher o saco nas últimas, e aí eu perguntei “Então porque você não vai até lá e beija ele na boca, se vocês se conhecem? Ela vai curtir.” Ela ficou de cara. Aí no fim o otário viu ela e veio dar um oi. Eu queria que você visse o jeito que eles se deram oi. Parecia que os dois não se viam há vinte anos. Parecia que tinham tomado banho juntos na mesma banheira ou algo do tipo quando eram pequenos. Velhos conhecidos. Era nojento. O mais engraçado é que provavelmente eles só tinham se visto uma vez numa festa babaca qualquer. Depois de um tempo, quando eles pararam de se babar, a velha Sally nos apresentou. O nome dele era George não sei das quantas – eu nem lembro – e eles estudava em Andover. Ah, grande coisa. Você tinha que ter visto a cara dele quando a velha Sally perguntou se ele tinha gostado da peça. O cara era tipo de um babaca que precisa de espaço para responder uma pergunta. Ele deu um passo para trás e pisou em cheio no pé da mulher que estava lá. Acho que ela quebrou todos os dedos do corpo. Aí ele disse que a peça não era nenhuma obra prima, mas que os Lunt, claro, eram mesmo uns anjos. Anjos. Pelamor. Anjos. Foi o fim da picada. Daí ele e a velha Sally começaram a falar sobre um monte de gente que eles conheciam. Foi a conversa mais babaca que você já ouviu em toda a sua vida.

J.D. Salinger, O apanhador no campo de centeios

O texto de Salinger tem uma série de marcadores narrativos que denotam a idade do personagem que conta a história. Há repetições de palavras, o que denota um vocabulário pequeno, gírias “fim da picada”, “babaca” e bastante atual “velho” para se dirigir ao interlocutor.

Tudo isso é muito bem pensado, para que os efeitos de sentido alcancem os resultados esperados.

Sintaxe da linguagem falada

Além dos elementos que explicamos acima, há outros aspectos no texto que nos ajudam a compreender quem é que está falando – qual idade, classe social e visão de mundo tem – e como está falando.

Os períodos curtos são próprios de uma fala de uma pessoa jovem. Mas isso, como nos alerta Lodge em A arte da ficção, não deve nos afastar das questões de fundo engendradas pela obra.

O livro de Salinger trata de questões profundas da condição humana, sobre a vida e a morte desde o ponto de vista de um adolescente de 17 anos morador de Nova Iorque.

Fazer isso, como se supõe, não é nada simples, mas pode ter grande impacto literário. Daí a importância de jovens e experientes escritores conhecerem diferentes técnicas e terem consciência delas no processo da escrita criativa..

Leia também

Arte Armorial: um movimento entre o popular e o erudito

Solitário, HQ de Christophe Chabouté

Literatura Mínima lança antologia sobre a preguiça

Literatura Mínima lança antologia sobre a inveja

Saldo – Contos

Projeto “NoLiNo”: obras escritas no Clube de Criação Literária concorrem ao Prêmio Kindle de Literatura

Aula Magna: desconstruindo “Merci”

Merci, novo romance de Robertson Frizero, repercute após lançamento

Merci, romance em verso de Robertson Frizero rompe com suas narrativas anteriores

Arte da ficção – Suspense

Microcontos paternos: um presente do Clube de Criação Literária para o dia dos pais

Arte da ficção – Como começar um texto literário

Microcontos Fututistas: novo lançamento do Clube de criação literária

Tagged:
Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

1 COMMENTS

LEAVE A RESPONSE

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Related Posts