Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

A árvore de Natal na casa de Cristo e Peru de Natal, dois contos natalinos

Em 2023 preparamos uma lista com dez obras que retratam o Natal na literatura. Neste ano retomamos duas das obras, uma de Fiódor Dostoiévski e outra de Mário de Andrade. Os olhares sobre os eventos em torno do nascimetno de Cristo nos inpiram como pessoas humanas, mas também como leitores ou escritores.

Nesta semana ainda publicaremos um post sobre algumas perspectivas de Deus que Jorge Luis Borges traz em uma de suas obras mais conhecidas, Aleph. Acompanhe nossas dicas e desfrute do espírito de Natal inspirado por dois grandes nomes da literatura.

A Árvore de Natal na casa de Cristo, de Fiódor Dostoiévski

Quem conhece a obra de Dostoiévski já se defrontou com sua visão franca a respeito da condição humana e suas profundas tragicidades. Este conto se passa na Rússia do século XIX. O texto, logo no início, dá a impressão de ser mais uma história trivial que se passa no duro inverno de seu país.

O Natal dos banquetes e das farturas não é parte da realidade dos personagens desta história, muito antes pelo contrário. O frio e a morte são parte da paisagem ficcional em que a a história se passa. Este autor incontornável da literatura mundial nos convida a uma imersão contundente sobre o Natal e sobre Cristo.

Apresentamos um trecho do conto de Dostoiévski.

Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar?


O Peru de Natal, de Mário de Andrade

Este que figura entre os contos mais conhecidos de Mário de Andrade foi um texto publicado originalmente em 1942, na Revista da Academia Paulista de Letras. A história gira em torno do primeiro natal de uma família enlutada pela morte do patriarca, contada por Juca, um jovem de 19 anos.

O narrador (e personagem da história) propõe à família que comam um peru na ceia. O pai, a esta altura falecido, era um homem austero que, apesar de ter uma condição financeira que o permitia viver sem grandes percalços, não era afeito a nada que não fosse o rigor cotiadiano, sem exceções até mesmo para comidas especiais em momentos especiais.

A proposta de Juca causou algum alvoroço e protestos iniciais. Contudo, a ideia acabou vencendo e a família desfrutou deste natal único. A certa altura, pontua Juca, “Ia escrever ‘felicidade gustativa’, mas não era só isso não”, relata Juca. “Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar.“

Trecho da obra de Mario de Andrade.

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.


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Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

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