Tento ser Dostoiévski, ao menos na dor
Robertson Frizero
Tento ser Dostoiévski, ao menos na dor. Sei que na escrita jamais serei, mas sinto no grande romancista russo, a quem devo muito de minha carreira literária, um irmão no sofrimento — e em como usar o infortúnio para criar Literatura.
Fiódor Dostoiévski entrou em minha vida de peito aberto. Fui convidado a traduzir e organizar uma coletânea de suas cartas para um livro ainda inédito em língua portuguesa — até então, não havia um volume exclusivo de sua correspondência. Minha estreia no mercado editorial foi, assim, mergulhar nesses textos, escritos não para os olhos dos leitores, mas para apenas um interlocutor, não raro um confessor de Dostoiévski. E ler essas cartas é mesmo conhecê-lo como poucos puderam em sua vida. Isso dá ao leitor do livro uma sensação de intimidade com o autor que apenas os romances não são capazes de oferecer.
Para o tradutor, é bem mais: tive que decifrar nuances da cultura russa, visitar a obra e a vida do famoso missivista para poder montar o quebra-cabeça entre sua imagem de divinal criador e seus segredos ocultos de ser humano falho e fraco. O que descobri me fez ver o quanto minha forma de escrever ecoava no modo de ver a Literatura próprio daquele grande mestre.
Fiódor Dostoiévski teve uma vida imensamente marcada por tragédias e percalços. De personalidade reclusa e profundamente preocupado com seu tempo e sua pátria, seu povo e seu Deus, o escritor russo viveu a morte violenta do pai, uma falsa cerimônia de execução, um longo exílio na Sibéria, a fuga do país por dívidas para a Alemanha e a Suíça, a falência nas mesas de jogo e até mesmo a morte de uma filha com pouco tempo de vida. Tudo isso aparece em sua obra — mas nunca como desabafo afetado ou soberba disfarçada em lamento. Dostoiévski usava a própria dor como material para a sua escrita, e sempre na construção das sensações e reações de seus personagens diante das circunstâncias: seu O Jogador não é um relato autobiográfico de seu vício em jogos de azar, mas traz toda a tragédia dos jogadores inveterados que perdiam pequenas fortunas nas mesas de carteado dos spas alemães; Os Demônios traz sua visão dos perigosos caminhos do radicalismo político, mas não é uma denúncia limitada a alguns grupos que ele viu funcionar ou observou nos tribunais visitados por ele; Crime e castigo vai além de um retrato momentâneo da juventude russa entregue cada vez mais ao niilismo e cada vez menos à fé religiosa. O escritor estava preocupado com o registro da alma humana; sua própria experiência não era importante a não ser como palco de experimentações, registro de impressões e resultados de decisões que ele mesmo trilhara também na vida. Nunca escreveu autoficção — embora tenha registrado, de própria voz, seus pensamentos e bandeiras no periódico Diário de um Escritor.
Assim conduzo minha Literatura, na esperança de honrar esse mestre involuntário que me ensinou a escrever mesmo com a distância dos séculos. A cada carta, comentário após comentário sobre seu processo de criação e fontes de inspiração para as ideias de seus inúmeros romances e contos, Fiódor Dostoiévski foi meu professor de como usar minha própria miséria e alegria como matéria de meus romances, poemas, contos e o que mais eu escreva. Por vezes, tento explicar a alguns leitores que a voz soturna de meus versos e histórias não é exatamente a minha — que não estou sobre a amurada de uma ponte, prestes a saltar. Poucos entendem ser o eu-poético a falar, com as exacerbações da Literatura, dos momentos vivo em silêncio, no escuro da casa vazia, quando ninguém estende a mão ou me distrai com seus problemas tão alheios aos meus…
Então, qual Dostoiévski, escrevo com a pena da agonia. É a melhor forma de calar a dor, afinal. Com sorte, consigo até mesmo atingir algum coração no caminho — que tenha sentido o mesmo, ou precise saber das tristezas dos outros para aprender a perdoar. Ao menos, tento.
Robertson Frizero, lá pelas 14h30 do Dia de São Manuel, em 2024.