Toque-me, por favor; o pior da solidão é sentir-se um intocável
Robertson Frizero
Toque-me, por favor; o pior da solidão é sentir-se um intocável.
Recordo-me sempre do que me narrou certa vez um amigo que fez um longo curso em uma universidade alemã. Ele chegou por lá em pleno inverno, estação que naquele país europeu é realmente fria e pede o recolhimento; além disso, estamos falando de pessoas que, não importa a sazonalidade, não são conhecidas pela mesma efusividade que nós, brasileiros. O fato é que, aos poucos, ele começou a não mais comparecer às aulas — hoje, ele entende que já era a depressão a prendê-lo em casa com seus longos braços imateriais. Depois de uma semana, seu sisudo coordenador bateu-lhe à porta. Encontrava-se o doutorando desarrumado, com olheiras, cabisbaixo, sem alegria de viver. Teutonicamente, o professor deu-lhe a ordem, quase uma bronca:
— Suba, troque de roupa, vamos dar uma caminhada. Você precisa de sol, veio de um país tropical, é como as plantas de lá: acaba morrendo se não tem luz suficiente… Morei no Brasil e sei que vocês murcham no inverno!
Depois da caminhada, um conselho:
— Procure amanhã mesmo um massagista.
Meu amigo ficou meio desconcertado. Pensando maldosamente no sentido oculto que essa profissão tomou na mente de muitos compatriotas nossos, ele estranhou. O que esse alemão louco está me sugerindo fazer?
— Um massagista ou uma massagista, o que preferires. — O alemão prosseguiu, sem mostrar nenhuma segunda intenção em suas palavras, do alto de sua experiência com estrangeiros. — O isolamento daqui também vai te fazer mal. Vocês, brasileiros, são afetivos demais.
Meu amigo brasileiro ouviu naquelas palavras certo tom de crítica.
— Com uma massagem semanal — O preocupado orientador pôs a mão em seu ombro — , vais ter pelo menos um toque humano.
A imagem perseguiu-me por longos anos. Incluí-a em meu livro de poesias intitulado “O amor é essa luz no fim do nada” — um poema chamado justamente…
TOQUE HUMANO
Dou bom dia aos passantes
e falo do clima com o motorista;
cumprimento com simpatia
o guarda que me abre a porta
e com inocentes gracejos
as moças que lavam o chão
que cuidadosamente piso
para não importunar;
sorrio para os colegas
entre e-mails e relatórios;
comento os males do mundo
com o dono da lanchonete;
volto pouco antes das sete
e, ao retornar, eu saúdo
o bom porteiro gentil;
à tele-entrega, não deixo
de dispensar fino trato.
Uma vez por semana, contrato
um massagista atencioso
para que, ao menos assim,
meu corpo, já quase idoso,
receba algum toque humano.
O que há poucos revelei até hoje é que este poema descreve a minha própria rotina nos meus últimos tempos de Porto Alegre, em que me descobri confinado em um pequeno apartamento do Centro que, não muito antes, eu via como um refúgio de felicidade. De repente, nada daquilo fazia mais muito sentido para mim — e, mesmo com a renovação de afeto mensal que as visitas ao meu filho distante me proporcionavam, eu sentia que faltava algo. Foi quando lembrei de meu amigo e dos conselhos de seu orientador alemão.
Fui lentamente descobrindo: eu era um homem sozinho e solitário — que não tinha mesmo ninguém e tentava me convencer de que gostava daquilo. Quando já estava refém da depressão, pensei nos meus passos cotidianos e dei-me conta de que era capaz de passar todas as horas de uma dia inteiro sem sentir um toque humano sequer. Eu convivia com as pessoas, tinha meu trabalho, minhas interações; tomava meu café religiosamente na confeitaria em frente, almoçava com colegas de trabalho, mas… Nenhum toque sequer, abraço ou carinho, cumprimento ou esbarrão. Foi quando decidi que precisava de um massagista, semanalmente. Para não enlouquecer.
Encontrei um profissional que percebeu — ou, ao menos, intuiu — minha inconfessável necessidade. Semanalmente, ele aplicava suas técnicas precisas de relaxamento muscular — e adorava por eu ser um paciente que lhe permitia usar todas as habilidades que aprendera em muitos anos de estudo. Tornei-me seu experimento feliz. Aquele momento era meu, uma hora em minha semana arrastada na qual eu me rendia a ser bem tratado. O toque de suas mãos dava-me um alento de que eu não era invisível, afinal. E, ao término de cada sessão, ele dava-me um abraço que valia por caixas e caixas de antidepressivo. Tornamo-nos amigos — ao menos, por uma hora nas tardes de quinta-feira, religiosamente remunerada. Ainda hoje o agradeço, cá da distante Florianópolis. Mas já tenho aqui outro anjo salvador e suas benfazejas massagens.
A solidão não é um estado de total reclusão; nunca foi. Pode-se estar sozinho como eu, agora, em uma grande cidade, sem alguém com quem abrir o coração ou um ombro onde repousar a cabeça em busca de não pensar em nada por alguns segundos, ao menos. Creio que a capacidade de nos tocarmos e, pelo toque, expressarmos amor, amizade, aceitação e empatia — isso torna-nos verdadeiramente humanos.
Por isso, peço humildemente: se um dia nos encontrarmos, não tenha vergonha ou pudor de tocar-me. Sequer me importo se tua imaginação foi para caminhos maldosos depois da frase anterior. Quero apenas me sentir humano, nem que seja por poucos instantes ou na eternidade de um acolhedor abraço.
Robertson Frizero, mais ou menos no horário em que eu tinha minhas massagens semanais às quintas-feiras, no dia em que Espanha e Portugal assinaram, há quinhentos e trinta anos, o Tratado de Tordesilhas.