Escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária

A estrutura narrativa inversa em “O amigo fiel”, de Robertson Frizero

Neste novo ano que se inicia umas das novidades do site do escritor Robertson Frizero será a publicação de textos autorais. Além de democratizar o acesso à literatura com a obra do autor, de quebra, no final, haverá um breve texto explicando a estrutura narrativa e as estratégias de escrita criativa adotadas.

Fiquem com O amigo fiel, no texto de estreia de 2022. Lembrem-se que ao final, temos um comentário técnico sobre o texto. Se você é escritor ou pretende sê-lo, acompanhe a leitura até o final para conhecer ou aprimorar técnicas de criação literária.

O amigo fiel

Robertson Frizero

Rodrigo foi absolvido por falta de provas. Outros não tiveram a mesma sorte. A imprensa acotovela-se à entrada do tribunal, aguardando o resultado de um processo que dois anos antes foi a sensação dos jornais, o tema inevitável das conversas. Quando o advogado de defesa abre a porta de vidro, a luz dos fotógrafos ofusca o discreto sorriso de contentamento do rapaz. Microfones são oferecidos para ele, que se cala enquanto seu advogado grita ter sido feita a justiça. Dentre os braços dos repórteres que disputam a atenção de Rodrigo, uma mão vence o vazio e atinge seu rosto com fúria. A violência inesperada enche o tumulto de um silêncio repentino. Abre-se um clarão e um homem de meia-idade avança contra o jovem, punhos cerrados em fúria. Um operador de áudio consegue conter o agressor, novidade captada pelos cinegrafistas mais atentos. Dois policiais correm para proteger o rapaz.


– Me deixem em paz! Eu sei o que estou fazendo! – o homem desesperado tenta soltar-se dos braços que lhe forçam contra os degraus da escadaria – É o meu filho que vocês estão destruindo!


Quando soube do real envolvimento do rapaz no crime, pensou que ainda havia tempo de consertar seus erros. Foi até a delegacia no meio da noite, pediu ao policial de plantão que lhe permitisse conversar com o filho naquela hora inusitada para visitas. Por desconfiança ou má vontade, o homem exigiu que Alfonso passasse por uma revista completa e deu-lhe não mais que dez minutos para que falasse a sós com Rodrigo. O rapaz ouviu calado o pai aconselhar que confessasse tudo, assumisse o papel de mandante, cumprisse seu dever diante do fato consumado, das vidas inocentes que ele atingira. O que ouviu do filho foi a desculpa de sempre, dos tempos de menino: não fizera nada de errado.


Alfonso dissera o mesmo quando perguntado por uma repórter indiscreta à porteira da fazenda, dois dias antes da prisão. Defendera também o filho das acusações dos amigos da Maçonaria. Sua mãe concordava com ele: o neto doce e gentil, o pequeno Rodrigo que roubava frutas da casa da vizinha e depois pedia a avó que fizesse doces para oferecer à dona da árvore, nunca seria capaz daquele ato tão terrível. Era um moleque brincalhão, sempre envolvido em travessuras, mas jamais o líder selvagem de uma gangue adolescente. Para Alfonso, tudo não passava de excessos: a polícia em busca de um bode expiatório, a imprensa atrás de notícias que alimentassem a curiosidade popular, os governantes querendo que o caso não sujasse suas pretensões de reeleição. Rodrigo era vítima da busca insensata por explicações para aquele crime sem sentido – um bom filho que, pensava Alfonso, apenas tinha escolhido mal os amigos com quem andava..

Foi o rosto do Fáñez no tele-noticiário da madrugada que alertou Alfonso. Um taxista descrevera um dos cinco agressores, o único que ainda não usava barba, e a polícia chegou até o rapaz por meio de uma denúncia anônima. O amigo de seu filho confessou tudo em detalhes, mas não quis apontar seus cúmplices. Os investigadores sabiam que eram cinco jovens dentro do carro de cor metálica e que um deles, o motorista, foi quem pegou sob o banco do carona o extintor de incêndio. Mas o Fáñez, cujo olhar espantado ilustrou os jornais do dia seguinte, negou-se a responder de quem fora a idéia de atacar, sem razão aparente, o operário desconhecido.

Eram a hora e o lugar errados. Os cinco rapazes voltavam de uma festa da faculdade, os apelos ao álcool e às provas de valentia eram muitos. No baile, começaram a desafiar-se nas doses de sangria e nas cantadas baratas às meninas. Depois foi o volante, a velocidade absurda em uma rua repleta de bares da moda. Eles revezaram-se nas manobras arriscadas e nas garrafas de bebida, tentando impressionar. Pedro era ousado, Martín repetia-o com igual desenvoltura, Muño quase atropelava os transeuntes menos atentos. Rodrigo estabelecia os novos desafios, eles cumpriam sem pensar, rindo-se a valer. O Fáñez era o estranho do grupo – embebedava-se fácil, não sabia dirigir tão rápido, era a piada constante daquela turma de amigos. Por diversas vezes pensara em desistir das noites de diversão e voltar para sua cidade. Faltava coragem ao Fáñez.


Diziam-se os “conquistadores”, tudo o que queriam era a liberdade – e para a vida pulsar dentro deles, precisavam fazer alguma diferença no mundo, era o que costumavam gritar ao vento em sua embriaguez. Na avenida principal, desafiaram o Fáñez a arriar as calças e se exibir para os passantes, mas ele teve pudores. Chamaram-no de fraco, covarde, maricas. Pedro e Muño colocaram-no ao volante, e Rodrigo exigiu que ele mostrasse sua fidelidade.
– Faço o que você disser.

Foi Martín quem deu o alerta, apontando o vulto e xingando, entre goles de uísque e gargalhadas sem sentido. Rodrigo sorriu, teve a idéia macabra. Alguns metros adiante estava o tal homem, de roupas simples e rosto cansado, à espera do ônibus que não chegava nunca.

Eram amigos de aventura desde a infância, Rodrigo e o Fáñez. O garoto, filho de um capataz, era companhia constante de Rodrigo, idolatrava-o. Quando Alfonso mandou o filho para estudar na capital, por conta de umas brigas que arranjara com uma família de árabes que tinha negócios com a fazenda, o Fáñez foi junto. Alfonso opôs-se a isso, não compreendia aquela proximidade. Com o tempo, passou a admirar o rapaz franzino que lhe trazia presentes e notícias da capital. Rodrigo poucas vezes retornava à fazenda, sempre envolvido com compromissos de estudo – enviava o amigo em seu lugar. Alfonso mandava-lhe frutas da fazenda, dinheiro em espécie e recomendações pelo Fáñez, e de longe acompanhava seus passos pelas histórias que o filho do empregado lhe contava. O rapazote era sempre muito solícito, acatava qualquer pedido do pai de Rodrigo sem questionar, sabia o seu lugar no mundo. Foi Alfonso que lhe deu o apelido – Minaya Alvar Fáñez – ainda quando era um menino, e mesmo o capataz esqueceu que o filho um dia tivera outro nome de batismo.

Boa alma, o Fáñez – nunca retrucava. Desde pequeno sempre fora assim, amigo constante, alma generosa. Quando Rodrigo ficava brincando até mais tarde no rio, mandava o Fáñez avisar o pai. Se ele recebia qualquer coisa de presente, ia mostrar ao Rodrigo, que quase sempre acabava ganhando do amigo o novo brinquedo ou o doce. Alfonso deveria saber – o Fáñez era fiel até a morte. Foi ele quem matou o Mouro, seu próprio cãozinho de estimação, a mando de Rodrigo. Com uma pedrada na cabeça, como prova de lealdade entre moleques. Alfonso recordava com clareza o rosto inocente do filho diante do animal destroçado e das mãos do Fáñez ainda sujas de sangue – um estranho sorriso de contentamento:

– Não fiz nada de errado, pai.



Estrutura narrativa de O amigo fiel

A estrutura narrativa pode enriquecer uma história – ou destruí-la por completo. Basicamente, são três as estruturas narrativas mais usadas:

  • a estrutura tradicional, na qual a história é contada na ordem cronológica dos fatos, partindo do início e conduzindo o leitor até o final sem mudanças temporais – por isso, é também conhecida como ab initio, ou ab ovo;
  • a estrutura in media res, na qual um evento relevante é apresentado primeiro ao leitor, sem que se mostre também sua conclusão, e depois a história é contada de seu início até aquele fato relevante e além, rumo ao desfecho;
  • e a estrutura inversa, na qual os eventos são apresentados na ordem inversa de sua ocorrência.

A estrutura inversa é, das três, a mais rara. Ela requer uma forte justificativa para que o narrador decida contar uma história de trás para frente. No conto acima, o escritor usa a estrutura inversa para explorar os sentimentos de um pai que descobre um terrível segredo sobre seu filho e, mentalmente, investiga o momento no passado em que ele, como pai, deveria ter se dado conta da tragédia iminente.


Clube de criação literária

Clube de Criação Literária é uma dessas ações de mecenato coletivo – neste caso, em favor do escritor e tradutor Robertson Frizero. Mas, como o próprio nome sugere, é uma ação de mecenato que traz, também, uma ideia inovadora no campo da formação continuada em Escrita Criativa.

Associando-se ao Clube, o participante colabora com o mecenato coletivo e tem acesso a conteúdo exclusivo sobre Criação Literária:

  • Material didáticoartigos resenhas de livros de interesse na área de Criação Literária;
  • Reuniões on-line e debates sobre Criação LiteráriaLiteratura Mercado Editorial;
  • Vídeos, áudios, apresentações e sessões de mentoria literária em grupo;
  • Sorteios mensais de livros e serviços de mentoria literária individual e leitura crítica.

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Roberson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária. É Mestre em Letras pela PUCRS e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pela UFRGS. Sua formação inclui bacharelado em Ciências Navais pela Escola Naval (RJ). Seu livro de estreia, Por que o Elvis Não Latiu?, foi agraciado pelo Prêmio CRESCER como um dos trinta melhores títulos infantis publicados no Brasil. Seu romance de estreia, Longe das Aldeias, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Açorianos de Literatura e escolhido melhor livro do ano pelo Prêmio Associação Gaúcha de Escritores – AGES. Foi, por três anos consecutivos, jurado do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro – CBL.

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